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Enterrados no Jardim

Podcast Enterrados no Jardim
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim qu...

Episódios Disponíveis

5 de 93
  • A vergonha tem de mudar de lado. Uma conversa com Patrícia Portela
    Não deveria haver coisa mais suja do que isso de pôr-se a escrever sem um fim claro, ir acerbilhando as frases de modo a gerar um grau qualquer de irrazoabilidade, uma relação suspeita, cujos esforços se tornam um motivo de perturbação à volta. “Começo a escrever. E quando o faço nada de bom se passa já no meu íntimo”, anota Santos Fernando. Na verdade, é essa a inflexão decisiva de uma escrita, quando nos damos conta de que não vem orientada por nenhum princípio edificante, ela impõe-se e nada de bom dali se pode esperar. E tudo nela se torna inquietante, desde logo um certo estilo híbrido, como um estranho ser cuja pele apenas transmitisse reflexos subtilmente distorcidos, e a sua superfície fosse ao mesmo tempo uma espécie de estômago, emaranhando a envolvência numa digestão laborosíssima, e fazendo o seu percurso, despedaçando com um humor algo cáustico tudo aquilo com que se cruza. Passou demasiado tempo desde que uma predisposição artística denunciava uma gente que se entregava a uma errância selvagem, figuras um tanto dissolutas, cujos modos se tornam raros, os gestos um tanto indecorosos, produzindo espontaneamente um cenário de clandestinidade ao seu redor. “Considero que a arte reflecte a moral e que não se pode renová-la sem levar uma vida perigosa e dando azo à mendicância”, escreve Jean Cocteau. Nenhum verdadeiro artista parte para a obra com um desejo de atingir a clareza. Desejáveis são as trevas. E não é uma questão de ser difícil, de se mostrar intratável, mas é a compreensão de que aquilo que nos escapa é o que tem para nós verdadeira gravidade e apelo, pois sinaliza esses mundos abolidos e os firmamentos extintos a partir do momento em que a imaginação já não ousa provocar verdadeiros desastres. “Não se trata de olhar sem compreender e de gozar gratuitamente de um charme decorativo”, insiste Cocteau. “Trata-se de pagar caro e de compreender com um sentido especial: o sentido do maravilhoso.” É preciso considerar o elemento pavoroso de uma ponderação que realmente se mostra disposta a suspender os valores que tomamos como essenciais. A partir de um certo ponto todo o verdadeiro pensamento deve provocar calafrios a quem se esforce por acompanhá-lo. Existe também a utilidade desses crimes que premeditamos longamente mesmo sem fazermos realmente tenção de os levar a cabo, mas apenas para gozar do elemento sinistro, e confessar-se, criando um nível de intimidade e partilha inesperados ao exprimir um ânimo vingativo, admitindo a dimensão de pavor dos desejos que formulamos com aquele gozo de um ser em sentir-se a retorcer, os tais desejos impossíveis por reconhecermos neles um excesso de consequências. Mas, sendo a vida aquilo que é, as fantasias tendem a ir enegrecendo, a assumir um teor cada vez mais perverso. E talvez não falte muito para que a arte não se possa já distinguir de uma conduta criminosa. “Noutros tempos, cheguei, por vezes a interrogar-me por que motivo os santos queriam tanto infligir a si próprios tormentos corporais”, escreve Rilke… “só agora compreendo que esse gosto do sofrimento até ao martírio era uma manifestação da urgência, da impaciência de não mais voltarem a ser interrompidos, nem incomodados, inclusivamente pelo que lhes poderia acontecer de pior. Tenho dias em que não aguento ver pessoas, com medo de que rebente nelas uma dor capaz de lhes arrancar gritos, tão forte é a minha angústia de que o corpo, como frequentemente acontece, abuse da alma, que nos animais encontra o seu repouso, mas a segurança só nos anjos a pode encontrar.” Esta segunda parte já não combina com estes dias sobre os quais atiramos ingenuamente pronomes possessivos. Na verdade, parece que em muitos casos aquilo que é preciso é abusar das almas, castigar os corpos o suficiente para que a matéria volte a reunir-se em torno de algum eixo. Entrámos por um caminho que aponta sempre na mesma direcção, e vai ao sabor democrático do baratuncho, assim os próprios poetas são coagidos a darem explicações e a balizarem os seus projectos ainda antes de se lançarem nas investigações que, idealmente, deveriam virar-lhes a vida do avesso, trucidando cada uma das expectativas que traziam. “As pessoas exigem que se lhes explique a poesia”, anota Cocteau. “Não sabem que a poesia é um mundo fechado que recebe muito pouca gente, e que chega mesmo a não receber ninguém.” Anda tudo tão conveniente, mas depois estamos todos fartos, ou apenas entretidos, distraídos, e assim. Idealmente as obras deveriam ser elas mesmas os inimigos daqueles que se viram obrigados a empenhar tudo para as arrancar de entre as partes mais vulneráveis da matéria e de si mesmos. Ora, este episódio cedo se lançou na investigação do descalabro, e convidámos uma especialista, instigadora desses acessos desejantes, alguém a quem parece animar a irresolução de quem não se revê na sua própria condição, alimentando-se da suspeita de que há muita coisa por aqui que não bate certo. Patrícia Portela aliou-se a nós neste esforço de traduzir toda a urgência e crueldade nas piores injúrias de forma a, pelo menos, causarmos alguma comichão que leve a coçar-se este tempo de calmaria podre mesmo estando o abismo em saldos.
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    4:45:06
  • As mais novas cartas portuguesas. Uma conversa com Sara Araújo
    "A poesia é onde tudo acontece”, escreveu Alejandra Pizarnik. E adiantou que dizer “liberdade” e “verdade” em referência ao mundo em que vivemos (ou não vivemos) é dizer uma mentira. “Só não é mentira quando se atribui estas palavras à poesia: o lugar onde tudo é possível.” Mas há muito que deixou de ser assim entre nós. Por cá a poesia é o lugar onde nada acontece, e são realmente muito poucos aqueles que declaradamente assumem a poesia como fala da insubmissão, e que através dela manifestam desprezo pelas formas do poder. Por essa razão, como já alguns fizeram questão de sublinhar, a poesia deve ser feita contra a poesia, e contra essa noção que hoje se vai tendo do poeta como personagem que se dá ares precisamente para esconder que nada tem a dizer, “e que por isso verseja, com vista a produzir um efeito, um prestígio que influa positivamente nas hierarquias do poder e do dinheiro” (Júlio Henriques). Começa a ser difícil perceber em que momento é que a poesia escapa a ser um desses discursos acomodatícios, alimentando o álibi cultural daqueles que gostam de ser vistos a patrocinar as artes e ver-se cercados dessas criações de estufa. Já a propósito das publicações colectivas que se têm generalizado nos nossos dias, desses almanaques ou antologias sempre a fim do regime celebratório, à boleia de comemorações e efemérides, Alfonso Berardinelli falava na importância de se impor algum critério de objectividade que rompesse com a tendência dos poetas de hoje para se auto-consolarem no seu pequeno gueto, onde nada nem ninguém os contradiz. “Os poetas criaram uma zona protegida para si próprios, contentam-se com pouco, esperam pouco de si próprios, são susceptíveis e vaidosos, mas não têm uma verdadeira ambição. Já não têm as grandes ambições que os poetas sempre tiveram – os quais podiam não alcançar grande repercussão, mas contavam com o valor e o poder dos seus versos. A força dos poetas sempre foi esta.” No ambiente desolador que por cá passa por espaço literário, há muito que se confunde o campo de criação literária com o da circulação dos livros, quando essa forma de proliferação apenas sinaliza como o meio editorial se tornou afim da agenda de consumo que nos vai sendo imposta, dissolvendo a perspectiva crítica nesse favor que promove um consenso ideológico e sem margem para os gestos de recusa e de confronto. À semelhança do que aconteceu com a poesia, e com tantas das categorias artísticas, os próprios movimentos de contestação social viram-se subsumidos às retóricas de reprodução de avatares sociais e identidades digitais, num processo que dá primazia às formas de autorrepresentação. Tudo é uma miragem, uma peça de teatro cujo cenário não tem centro, nem corpo ou geografia. Também o feminismo que assume mais visibilidade é cada vez mais uma forma de auto-indulgência, quase um reflexo de ordem narcisista, como nos diz Jessa Crispin. “Eu defino-me como feminista e por isso tudo o que faço é um acto feminista..." Trata-se de um argumento político de tal modo evidente e poderoso, que a melhor forma de o esvaziar passou por cooptá-lo como uma estética e uma forma de merchandising. No seu manifesto feminista – "Why I am not a feminist" –, Crispin vinca que a história do feminismo tem sido marcada por um “pequeno número de mulheres radicais, muitíssimo empenhadas, e que há custa de um enorme sacrifício fizeram avançar a posição das mulheres, normalmente através de actos e palavras chocantes”, sendo que a “maioria das mulheres, embora tenha beneficiado imensamente do desafio e do empenho dessas poucas, tratavam logo que possível de se dissociar delas”. Esta ensaísta norte-americana que recupera e honra as posições da segunda vaga feminista é implacável na denúncia do individualismo e do capitalismo, sistemas de valores que, segundo ela, distorceram totalmente os propósitos e o alcance do feminismo, encorajando as mulheres a pensar no movimento apenas na medida em que este conduz a ganhos individuais. “As últimas duas décadas dessa forma de feminismo enquanto lifestyle levou tantas mulheres a partirem do princípio que a coerência com o feminismo não significa abdicarem nem recusarem-se seja ao que for. Bastava vestirem o rótulo, e nem era justo que se sentissem pressionadas a renunciar ao casamento, à cultura popular misógina, às roupas de fábrica ou às carreiras corporativas para se alinharem com os princípios feministas – e o facto é que muitos dos nossos ‘intelectuais de proa’ feministas se têm dedicado a todas as formas de contorcionismo no sentido de demonstrar como, não só nenhuma destas coisas é anti-feminista, como, na verdade, fortalecem o movimento.” Sara Araújo, a nossa convidada neste episódio, encarna bem esse trabalho árduo e o empenho que é essencial para que seja possível voltar a colocar a tónica no desmantelamento das hierarquias e dos elementos de opressão social que sempre estiveram na mira da crítica feminista. Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra durante quase duas décadas, acabou por cortar com aquela instituição na mesma altura em que vinham a lume as alegações sobre o clima de predação sexual e intimidação ou assédio moral no seio desta. Hoje, é uma das figuras chave no mais significativo acto de insurreição contra as estruturas despóticas que persistem na academia, que, volvidos 50 anos do 25 de Abril, ainda é essa incubadora dos mecanismos de poder e repressão que alimentavam a nossa ditadura tão afeiçoada aos seus pergaminhos catedráticos.
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    4:58:32
  • Jornais, orquestras, tripulações e naufrágios. Uma conversa com João Sedas Nunes
    Uma boa redacção é um cruzamento entre um navio daqueles do século XVII e uma tremenda orquestra, um sítio que em si mesmo vai a caminho, e transporta um profundo tumulto, esperanças, fúrias, um convívio pouco vigiado, alentado por todo o género de substâncias, quimícas, imaginárias, o raio, é um sítio laborioso, grave, atarefado, às vezes absurdamente tenso, outros explodindo de ânimo, risos, e que está sempre a tremer no ar do dia seguinte. É uma catedral onde buscam refúgio os seres que não estão bem com a vida como ela é, e querem enganá-la, produzir-lhe uma ilusão menos mesquinha. Combinam-se ali todas as influências, planos doentios, os mais ingénuos activismos, tudo num romance agitado, e sempre convencidos de que de uma frase que se escreva ali pode gerar-se alguma convulsão, arrancar um gemido às fundações desta porra. De algum modo, nos jornais tenta-se abrir uma jazida a partir do inexistente, convocar outras relações de ordem. Às vezes até há quem abra um livro da Llansol, e leia alto para acicatar os demais: "Sempre a inexistência tem mais força?" E depois, algum outro assente e prossegue: "No fundo o que existe provou já a sua fraca intensidade. Depois da infância o universo só interessa aos distraídos. Pois bem: acolher o invisível como a única notícia insólita” (Gonçalo M. Tavares). Anda-se ali a trabalhar para que o esforço e o talento combinado daquelas paixões e ódios revezando-se possa dar origem a um órgão para sempre inacabado, como uma força de impulsão que relembre como o momento mais importante é esse em que se admite que o principal ainda não foi feito, que, no fundo, ainda está tudo por fazer. Para lá de uma certa superfície de mundanidade, o mais importante é mergulhar para além dessa censura dissimulada das expectativas, ter a audácia de decepcionar repetida e magnificamente aqueles que só esperam dos jornais que produzam o ruído de fundo que dá a sensação de que tudo segue normalmente. Como se lê numa das casas pardas, “o mau é cada um ao seu, quem não gosta do que há devia ser do toma lá, dá cá”. A propósito da morte de José António Saraiva, lançamo-nos nalgumas considerações sobre aquilo que tem restado por aí, com dificuldade em salvar-se dos interesses e da propaganda, esse vago panteão de figuras enterradas em vida, que resistiram como podiam, alguns virando-se para aquele quixotismo alucinado, outros servindo-se desse handicap de crepúsculo dos deuses nada wagneriano para se entregarem a uma barafustação umas vezes melancólica, outras raivosa, mas apropriada a um animal acossado e já moribundo. Algum do melhor jornalismo degenera num monólogo irado, mas, por estes dias, essas tripulações parecem ter debandado, espalharam-se, adoeceram, estão trancados alguns com os vícios que lhes restaram nalgum buraco, e os vizinhos poderão escutá-los no corredor: "nunca faltei à verdade, mas rais parta a vida que quanto mais abro os olhos mais nojo me dá, que ele não falta aí gente a quem se demoramos o olhar logo lançam em tom de desabafo que isto tem que levar uma volta, ó se tem, mas uma volta?, isto precisa é de um naufrágio de todo o tamanho, para levar daqui a merda dos que nem se agacham para cagar..." O que restou desse ânimo, encontra-se ainda nalguns desses livros que pareciam nascer contagiados como sinfonias daquela convivência toda, livros que parecem estar para ali numa luta consigo próprios, a tentar segurar-se. E o que neles mais nos convence é como mordem a mão que se lhes chega, que abre aquilo ao meio para o olhar logo se ver assaltado por uma frase que, de mangas arregaçadas, num impulso medonho, está ali a digerir uma intriga dos diabos, e mesmo se o largamos, o livro põe-se a pulsar a um canto, e mal te agarra de novo continua louco e amotinado ao fim de tantas páginas, a ponto de o seu ritmo se te meter na corrente. Mas o tão frágeis, o tão desligados que andamos vem de nos assuntar a ideia não só dos jornais como esses livros feitos em comum, não só dessa actividade dos espíritos em que a todo o momento fica claro como os nomes cedem e o que importa são os turnos, como se lida com as vagas também num quadro de sucessão, como este reforça aquele, pega onde o outro deixou a coisa e adianta mais uns metros ou quilómetros. A ambição era essa, gestos em comum, alargados, assumindo maior alcance, outra repercussão, podendo sempre ser retomados, revistos, corridos e transformados. Mas há uma espécie de terror de uma cultura desabrida, e desse efeito de refracção e mutação imparável. "Poderíamos, enfim, ser mais os poetas nados e criados, se não te temeras tanto da corporalidade extrema de toda a mutação, mudança que valha", escreve Maria Velho da Costa. E neste episódio João Sedas Nunes, filho da escritora, ele mesmo um espírito bastante inquieto, que se tem dedicado à sociologia e assume o gosto por explorar temas tantas vezes ingratos, as feridas nas relações sociais, estendendo as interrogações sobre o trabalho e as questões de inserção, a juventude, o desporto, e o futebol em particular, veio para que discutíssemos algumas dificuldades e apreensões, os dilemas da senescência nos nossos dias, do desconjuntamento económico, mas também a nossa admiração a diferentes níveis pela autora de "Maina Mendes".
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    3:46:09
  • O surrealismo e a astúcia popular. Uma conversa com B Fachada
    Muitos parecem deslumbrados com a época e a sua tolerância, o seu enredo caprichoso, a sua ânsia de tudo deglutir, de acolher todos os deserdados, todos esses que vão sendo empurrados para o amontoado, formando a grande pilha, nessa construção que ganha altura apenas para que tudo fique confinado à sombra que projecta. A imensa variedade de que as comunidades se compunham, as periferias com as suas diferenças, tudo se vê invadido pelo centro, que produz uma lei da gravidade que tudo desfigura. Como assinalava Pasolini, "as estradas, a motorização, etc., uniram estreitamente a periferia ao centro, abolindo qualquer distância material". "Mas a revolução dos meios de informação foi ainda mais radical e decisiva. Por meio da televisão, o centro assimilou o país inteiro, que era historicamente tão diferenciado e rico em culturas originais." Isto significa que, hoje, todos aqueles que provêm de alguma região distante, de um tempo distante, de uma outra relação ou convicção, estão sujeitos a ser acusados de um desvio, um efeito de perturbação. Dentro dos elementos a partir dos quais o centro organiza a sua rede de influência e coação, qualquer diferença é vista como suspeita, e gera sobre o estranho algum tipo de caricatura ou preconceito. As variações culturais, de linguagem, os sotaques, os elementos que são específicos de zonas delimitadas, onde foi possível produzir algum devaneio, oscilações, metamorfoses difíceis de situar ou capturar, tudo isso vem sendo denunciado à medida que o centro os cobre na sua sombra, procurando dar lugar "a uma cultura homogénea, estática, onde a linguagem oral é, agora, semelhante à linguagem escrita - e ambas igualmente pobres, sem exuberância, sem margem para a improdutividade", nota João Oliveira Duarte. "Continua a haver 'cultura popular'. Mas observemos o que se passa hoje sob esse nome um pouco por toda a Europa, os programas de televisão, os concursos, o divertimento para ocupação das horas vazias: onde havia exuberância, mesmo convivendo com a miséria, com violência, há hoje uma igualdade monótona e uma lógica do pastiche." A cultura passou a funcionar como uma forma de arrogância, com as suas sínteses descaradas, procurando nivelar e suprimir todos os elementos que lhe resistam, que lhe ofereçam atrito. O consumo acelerado exige um mesmo regime de processamento, de tal modo que o farisaísmo triunfou em toda a linha, e aquilo que esta feição cultural pretende é gerar esse ser que se contenta com qualquer coisa, que não procura dores de cabeça, antes conciliando a practicidade da vida quotidiana com a incontestabilidade da religião do lucro, limitando-se a dar uma no cravo e outra na ferradura, e, no fim, submete-se. Como lembra Pasolini, a luta progressista pela democratização expressiva e pela liberação sexual foi brutalmente superada e tornada vã pela decisão do poder consumista de conceber uma vasta (e, ao mesmo tempo, falsa) tolerância". Contra o desespero e as formas de desacato, contra a desilusão que hoje se exprime de forma suicidária, os nossos democratas continuam a pregar a moderação, as velhas fantasias hipócritas, a paciência, a tolerância. Mas a cólera tem vindo a contagiar tudo, num esforço comum, ainda que tão desorientado, no sentido de despedaçar este tempo morto. Enquanto isso, vendem-nos um conformismo e um bem-estar que descura inteiramente a génese cultural do desejo: "a liberdade humana é consciência, imaginação, construção linguística na ausência de alicerces ontológicos", diz-nos 'Bifo' Berardi. "É nessa dimensão que se dá a aventura moderna: só em segunda instância tem que ver com liberdade política; em primeiro lugar, tem que ver com indeterminação ontológica, autonomia em relação ao Ser." Mas, hoje, os fascismos são antes de tudo esses programas aspiracionais, esse enredo que procura a dissolução dos elementos de comunhão, de coesão social, instituindo um quadro de competição pelo sucesso, e ligando a realização pessoal ao dramatismo insonso identitário, em que cada um se sujeita a existir num perpétuo casting, tentando provar a genuinidade entre a sua realidade e o personagem que gostaria de representar. Neste episódio, contámos com o ídolo do avesso, um bruxo que fez da música esse ouvido encostado ao chão do mundo como a um peito, a refazer a infinitude plena da imperfeição, do gozo sideral que se obtém por meio da errância. B Fachada gosta dos mundos possíveis, não abdica dos processos falíveis nem vive para as gerais abébias, mas vem praticando uma experimentação comprometida com este tempo e este lugar, e revelando uma consistência crítica e uma habilidade extraordinária para se libertar dessa sórdida tristeza dos que acham que está tudo feito, e só resta ir ensaiando ao espelho uns esgares e expressões de enfado.
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    4:32:00
  • Espantar os limites da visão. Uma conversa com Carlos Vidal
    Talvez o homem seja esse animal trágico condenado a gerar os predadores que acabarão por lhe dar caça e levá-lo a uma submissão permanente ou, até, à extinção. Mas antes de dar forma a uma razão exterior, fomo-nos desprotegendo, expandindo o elemento sacrificial e degradante dos mais fracos pelos mais fortes, até nos condicionarmos a uma existência em que cada homem é o seu próprio inimigo, deixando-se inocular de um vírus que o destrói a partir de dentro. Pensemos como vivemos presos às imagens, dominados e sem nos podermos libertar do fascínio que estas exercem sobre nós, de tal modo que sacrificámos a nossa linguagem a elas. Num excerto da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, pode ler-se isto: “Lembra-te amiúde do que diz o Eclesiastes: ‘o olho não se farta de ver nem o ouvido de ouvir’. Procura, pois, desprender o teu coração das coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis, porque os olhos que se entregam à sensualidade mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” Vivemos encerrados, manietados por fantasias cada vez mais espúrias, delirando à beira da inconsciência, e até de forma cada vez mais ignara, sem nem nos sujeitarmos à inspiração e aos desafios que os antigos colocavam tentando alcançar e preencher o último horizonte, essa “orla mítica do mundo”. Cada vez mais inábeis na hora de nos lançarmos naquela exploração de que só uma imaginação treinada para tarefas de batedora dos mais ermos e improváveis terrenos é capaz, ficámos sujeitos a essa forma de câmbio da realidade pelas imagens, incapazes de recuperar uma experiência desta que produza um verdadeiro abalo dos sentidos e da inteligência. Num dos seus ensaios, Wagner lembrava como “nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos. Os Gregos iam buscar os materiais da sua arte aos produtos mais elevados da cultura comunitária. (…) O embotamento típico da educação contemporânea, na maior parte dos casos meramente orientada na perspectiva do lucro industrial, dá-nos uma satisfação idiota e simultaneamente orgulhosa da nossa inaptidão artística e ensina-nos a procurar os objectos da experiência estética fora de nós, aproximadamente com o mesmo tipo de desejo com que o depravado procura junto de uma prostituta um fugaz prazer amoroso.” Nos nossos dias, fomos abdicando da dificuldade e dos processos de enamoramento e sedução, desistindo desses aspectos de recriação a partir dos quais se funda uma identidade autónoma, sempre em relação com o outro, e traímos a busca do prazer por esse substituto mais certo que é a descarga de adrenalina. Formamo-nos como seres ansiosos, capturados por uma condição generalizada de anestesia na sequência de uma tensão contínua, e o remédio para todas as nossas crises passa por aumentar a dose desta realidade de substituição, acelerar o ritmo, intensificar os estímulos e o efeito de estimulação do sistema nervoso. Estamos sempre ligados, mas num presente que se arreda da vida, consumindo a própria ausência, sequências de imagens fugitivas, um mundo impossível de tocar ou saborear, e nos raros momentos em que nos afastamos, entramos numa espécie de ressaca que torna a realidade que não desapareceu nem foi devastada entretanto ainda mais desagradável para esses sentidos atrofiados pelos fluxos de neuro-estimulação. Uma verdadeira revolução hoje teria de começar por um corte geral dos sistemas de enervação, de modo a que a emoção de sentir um corpo próximo pudesse fazer-nos superar essas inibições que estão a gerar indivíduos cada vez mais isolados e indiferentes. Um dos mistérios mais cativantes do conhecimento que fazemos da realidade, e de que todos os grandes poetas em algum momento se dão conta, foi expresso por Heidegger quando notou que, quanto mais conhecidas se lhes tornam as coisas cognoscíveis, mais estranhas são e permanecem para eles. É como se o mundo preservasse o seu fascínio não admitindo a posse, mas instigando um elemento de errância, de busca incessante. A certa altura, as letras do mundo tornam-se etéreas, essas serifas de mármore, sólidas hastes erguidas nas rochas e postas nos ápices, e que ascendem como as colunas na história… Assim, da mesma forma como nos debruçamos tentando traduzir relevos antigos, também a carne pode beneficiar da mesma atenção minuciosa, fazendo de nós seres que empurram e se descobrem e transformam por meio de uma afeição delirante. Neste episódio, vamo-nos deter sobre as transformações que se têm operado ao nível da biopolítica e que têm constituído a mais severa ameaça que as democracias modernas alguma vez enfrentaram. Seguindo o diagnóstico da mutação antropológica que se tem operado a nível cognitivo, vamos procurar perceber como as imagens são as armas às quais temos vindo a sucumbir. Para nos guiar e expandir a perspectiva crítica sobre a degradação dos nossos contactos e percepções, Carlos Vidal juntou-se a nós. Artista, crítico e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem uma extensa obra teórica que se detêm sobre a falibilidade da visão e tudo aquilo que faz de nós vítimas tão voluntárias das “aparições” espectaculares.
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    3:09:34

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Sobre Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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Generated: 3/25/2025 - 1:00:25 AM