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Enterrados no Jardim

Podcast Enterrados no Jardim
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim qu...

Episódios Disponíveis

5 de 79
  • As listas, os algoritmos e os espantalhos. Uma conversa com Patrícia Soares Martins
    Mais tarde, talvez façamos outra leitura do que significaram estes ensaios, como se em nós buscássemos o inimaginável, uma hipótese de romper com a cadência que nos leva a sentir que os dias se sucedem no sentido de uma constante subtracção. Talvez um dia as derivas que acumulámos possam permitir outra leitura, como um esforço que fizemos para nos mantermos num estado de perfeita disponibilidade de forma a que um tempo que sufocava entre impossibilidades por fim se oferecesse margem para romper com esta música desgastante que nos cerca e nos domina até ao enjoo. Nem há quem nos belisque, e é tão raro ouvir articulada com uma respiração nervosa e vibrante alguma conjugação de palavras que seja capaz de nos perturbar ou sacudir. Muitas vezes esbarramos com nós próprios, cumprimentamo-nos com menos que um aceno, um olhar que nos poupa àquelas palavras que, de tão circunstanciais, quase dão cabo de nós, e parece que estamos de volta a algum desses convívios cada vez mais desnecessários e onde temos dificuldade em saber quantos somos, e porquê este infeliz número, de tal modo que receamos estar a subdividirmo-nos... Não seremos meras réplicas, sequelas num enredo sem saída?, e parece-nos que cada tipo aqui presente, chegando a sua vez, tem o cuidado de dizer apenas o que for mais previsível, de fazer unicamente os mais breves comentários banais e de aparentar ter aceitado aquele convite formal e passado porventura meio dia em viagem para vir dizer ou ouvir tão-só o que não seja de todo consequente. Nem sei se não li já isto algures. O Breton diz que, em matéria de revolta, nenhum de nós deveria precisar de antepassados. Mas este é o ponto que parece mais difícil, antes mesmo de as coisas sucederem, de os acontecimentos se precipitarem, quando ainda parecia que estava ao nosso alcance desencadear alguma ruptura decisiva. Alguns, mais tarde, irão fantasiar-se nos seus relatos ao ponto de dizer que, por estes dias, viviam já como se retirados do mundo. Em breve irá emergir toda uma literatura de auto-exoneração, mas ser-nos-á difícil acompanhar essas inversões, a dizermos alguma coisa a seu respeito, se nos parecia que o objectivo de cada um deles foi nada dizer ou fazer que seja digno de nota. "A vida de algumas pessoas pode ser tão sucintamente resumida que não passa de uma porta que bate ou de alguém que tosse numa rua escura a meio da noite", notava Bradbury. "Olha-se pela janela, a rua está vazia. Quem quer que tenha tossido já desapareceu." A consciência parece ter-se tornado mais um dos aspectos do negócio. Fomos perdendo o chão, nós para quem essa foi a nossa primeira leitura. Foi com esse olhar perdido que aprendemos as primeiras letras. Era uma espécie de deficiência que nos defendia da coisa seguinte. Íamos, mas sempre como por acaso, como se por distracção ou empurrados. Talvez venha a ser possível fazer uma história dos diferentes caminhos que levam à literatura, desde logo uma história que passe bem longe do mercado. Uma narrativa sobre gente que se despenhou ou precisou desesperadamente virar-se para outras épocas, outros lugares. Mas uns anos mais tarde, quando viemos à superfície, éramos nós os grandes iletrados, não percebíamos patavina da realidade em que estávamos metidos. As filas continuam a avançar, continuam a não ter fim. Caminhamos na sonolência de mundos contrários, como diria o outro. Cada vez teríamos mais dificuldade em reconhecermo-nos mesmo se esbarrássemos contra nós próprios num destes ajuntamentos. Vamos sendo corpos sem eco, isto numa sociedade em que, há mínima perturbação, se é alvo de um processo, disciplinar ou não, e muitas vezes o pior é não ser clara a natureza. Até podem obrigar-nos a aguardar aqui ou ali enquanto nos martirizamos apenas para acabarmos o dia levando para casa a notícia de que fomos promovidos. Mas nem para nós é muito certo aquilo em que andamos metidos. É difícil chegar aos 35 ou aos 40 anos se se for demasiado directo, sem que isso se torne para nós um motivo constante de luta. Começamos a ser interrompidos e interrogados, e ficamos a dever explicações a meio mundo. Talvez, por isso, tantos se preservem na absoluta sensaboria dos ditos e expressões que não levam a coisa nenhuma. "Todo o bom raciocínio ofende", como notou Stendhal, sublinhado por Beauvoir, que prossegue a ideia, adiantando que, perante uma opinião peremptória, uma verdade definitiva, as pessoas amedrontam-se. "Tal é vaidoso, egoísta, mau, cúpido; enunciar-vos-ão com complacência os seus defeitos; mas se vós concluís: 'É um homem mau', o vosso interlocutor protesta: 'Eu não disse isso'; e acrescenta, talvez: 'Apesar de tudo, o fundo é bom'. Assim, o homem aceita ser pintado com pequenas pinceladas cruéis, mas, se o forçais a recuar para contemplar o seu retrato em corpo inteiro, fraqueja, não quer resumir, não quer concluir (...) repugna-lhe tomar partido: Deus sabe até que consequências poderia arrastá-lo uma lógica muito rigorosa; agrada-lhe ouvir-se falar, sentir-se pensar (...) mas com a condição de os seus pensamentos não o comprometerem, de permanecerem numa penumbra propícia. De facto, os homens não acreditam no que dizem, e é isso o que lhes permite saltar com desembaraço de um plano de verdade para outro"... E se acreditassem? Sem a busca de um alto grau de exigência as palavras são menos do que nada. Tornam-se uma das piores formas de sujeira. Algures, Blanchot anotava: "Todo o escritor que, pelo acto em si de escrever, não é conduzido a pensar: 'Eu sou a revolução'... na realidade, não escreveu nada." Neste episódio, e com o ruído azucrinante dos balanços de final de ano que logo se convertem em listas de sugestões para consumos natalícios, pudemos contar com a atenção e o exercício reflexivo de Patrícia Soares Martins que, depois de uma década como crítica literária nas páginas do Expresso, e um longo percurso a dar aulas na Faculdade de Letras, não perdeu o entusiasmo pelos textos e autores que persistem como grandes instigadores, mesmo se não esconde um certo desânimo num momento em que, mais do que se proibirem ou queimarem livros, o verdadeiro crime contra a literatura, e aquele contra o qual somos impotentes, é a não leitura dos livros. "Esse crime, uma pessoa paga-o com toda a sua vida; se o criminoso é uma nação, paga-o com a sua história", vincava Brodsky.
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    4:18:53
  • Empregados da própria visibilidade. Uma conversa com Guilherme Henriques
    Aqui estamos entre todos os caprichos que nos dão a volta às ideias nas íntimas mudanças de cada dia e, muitas vezes, até por cansaço de nós próprios, acabamos invariavelmente por falar de política, e por decidir o que fazer com o país, especialmente se não sabemos o que fazer de nós próprios. Da mesa ali ao fundo, o Macedonio Fernández sugere que o problema se impõe pelo facto inescapável de que cada um de nós sabe profundamente duas ou três verdades complexas, mas os nossos contactos com a vida são de mil aspectos mais, de modo que fazemos quase todas as partes da nossa vida às escuras. O que nos agarra são uns quantos hábitos, em que insistimos, e que fazem o favor de afiar por nós aquilo que passa por uma personalidade, mas, cá dentro, para a maioria dos que se indagam, a sensação mais comum é de que escorrem pelos dias, e dependemos de alguns vícios para nos conciliar com a realidade. Para tantos, a sua própria natureza alienada é pressuposto da grandeza. Seja como for, por desconsolo, estamos a transformar-nos numa geração de tipos infrequentáveis, gente que troça de tudo, que balança entre a compaixão e o sarcasmo. E quanto ao bando que trabalhava a solidão através da arte, esses que partilhavam os seus juízos como quem prega uma partida aos demais, à moral e até a Deus, os chamados literatos, vivem hoje nessa imbecilidade auto-absorvida das suas conspirações que, sem a menor capacidade de efabular, se ficam pelo ressentimento. A falta de reconhecimento dos pares ou sequer de uns poucos leitores, compensam-na com uma dolorosa e insistente vanglória. E surgem-nos por aí cantando loas a si mesmos. Os egos deixam no ar um fedor a mortos-vivos. Vivem para as exéquias fúnebres, e não se cansam de nos maçar com a forma como gostariam de ser recordados. A peça é sempre a mesma, já a sabemos de cor, mas temos de aturar este tipo de actores que vivem embalsamados nos seus próprios maneirismos e exuberâncias desmioladas. Em lugar deste género de mártires constantes, antes são de preferir aqueles terríveis optimistas que não nos maçam com as suas desgostosas fantasias. "A vida é bela e assombrosa!", terá exclamado Maiakovski na véspera de se suicidar. Ao menos que a literatura nos pudesse servir ainda como vingança, escapando à frivolidade inconsequente desses dramas através da incrível densidade e heterogeneidade do material narrativo que nos é oferecido. Mil vezes os brutos que são capazes de enterrar as esporas no caprichoso murmúrio do mundo e impor-lhe os seus delírios, esses que se mostram de tal modo empenhados em produzir desvios vertiginosos que os lemos de corpo perdido, voltados para aquela luz, suspensos dela. Temos boas razões para estarmos fartos de queixumes e lamúrias, para não aguentarmos mais esses tipos esforçados, vulgarmente honestos, por vezes até competentes. Antes preferíamos ser trapaceados, levados por batoteiros, ilusionistas, magníficos vigaristas, gente que da nossa atenção fizesse uma autêntica feira, algum antro de perdição. "De que riem os homens que um dia irão morrer? Riem, porquê?", interrogava Prado Coelho... "Porque tudo é frágil, indeciso, e, no entanto, único. Erguem-se, sustentam-se, entreajudam-se, empurram-se no escuro, escorregam, tombam, ferem-se, movidos sempre por esta paixão do único." Evidentemente, esta malta perdeu a fé nessa instância autónoma, nessa reserva do espírito, nessa barricada onde nos multiplicamos e nos entregamos a inumeráveis transmigrações. Perderam a fé nesse "indício clandestinamente transmitido, morse obstinado, de que é preciso estar atento, mobilizado como um exército face ao inimigo". Merecem-nos muita pena todos esses que nunca tiveram a paixão ou a coragem para deixarem de ser apenas um. Existir-se agarrado à convicção de si próprio merecia ser levado em conta como uma aflição seríssima. Já outros, sentem-se infectados por tanto daquilo com que contactam. Assim, adoecidos desde tantos do tal, o problema não será reconhecer este estado de desagregação íntima, nem se temos escolha. A partir do momento em que se admite o princípio fraudulento que liga os dias entre si, suspende-se em nós aquele ritmo regular, congeminado por uma crença qualquer no curso do tempo, nas evidências do progresso e no valor de justiça, que, inerentemente, deveria indemnizar-nos pelo esforço, compensar todo o labor e sacrifício. O problema, na verdade, passa a ser outro: como melhorar o nível dessa patologia de que sofremos. Temos de elevar o grau daquilo de que sofremos, melhorar a doença. Neste episódio, raptámos um jovem crítico que ia ter uma sessão de padel e fingindo que tínhamos isco, puxámo-lo para o desaire que já se sabe. O Guilherme tem aquela amabilidade própria dos que têm ainda muito tempo, e aquela confiança de quem parece imbuído de uma serenidade aérea e musical, sendo um dos poucos que entendeu começar cedo a dar conta das suas leituras, das suas admirações, afastando-se do género mais comum entre nós, esses literatos que só falam de si próprios e conseguem sempre chegar lá a pretexto de falarem de generalidades ocas.
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    3:26:53
  • Serenata de três vadios sob a chuva do futuro. Uma conversa com Bruno Peixe Dias
    O mundo tornou-se novamente exterior, absurdamente exterior, ao ponto de nos causar arrepios, mas a nós, hoje, tudo nos faz mossa. Nestas transfusões de sangue amarelo recebidas dos sistemas digitais, estamos cada vez mais uns bichos de aviário. E dividimos tudo em categorias, e temos infinitos protocolos de segurança, de desinfecção. Cá dentro, aquilo que nos provoca cócegas são as luzes, os sons, todas essas cores a pintalgar o cenário, e os ecrãs com as suas informações habituais. "Superfícies, superfícies, não há perigo se as atravessarmos, se estivermos nelas ou elas em vós. Fazei por continuardes superficiais, com as vossas emissões superficiais para receptores superficiais", aconselha Michaux. Lá fora chove, bátegas d'água, e tudo isso perturba o sinal. Nós mesmos somos afectados, o ambiente torna-se malsão. O espírito, o mecanismo cerebral tropeça, manobrando com dificuldade. Mas o que se há-de fazer? São cada vez mais constantes os temporais. Às vezes acordamos com a sensação de ter engolido uns baldes, e tudo isso nos subiu à cabeça. Esta, meio vacilante, começa a pregar-nos partidas, às vezes dolorosas. Estas nossas consciências subornadas pelo consumo até à letargia têm-se revelado bastante frágeis, escondemo-nos nessas superfícies, e as nossas ideias foram-se adaptando a meros reflexos, sem verdadeira profundidade. Quando falha a luz é uma autêntica catástrofe. E o pior é que sem essas meditações guiadas pela fiada de projectores, o vazio com o seu rumor de penas coloca-se a nosso lado e põe-se a devorar-nos o fígado. De resto, a companhia é terrível. Estamos cercados de toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. “Há muitos que, deixando cair um amigo, um amor ou o peso de um dever, se desculpam, a seus próprios olhos, evocando a obrigação de fidelidade para consigo mesmos — que é, muitas vezes, apenas o modo mais cómodo e cobarde de se enganarem a si mesmos. Pois quantas pessoas existirão capazes de conhecer tão exactamente as leis da sua própria evolução para poderem saber se essa infidelidade em relação a uma pessoa ou a uma coisa não era, ao mesmo tempo, o pior que cometeram em relação a si próprios?” Assim o viu Arthur Schnitzler. Vivemos cobardemente encerrados nas mais podres fantasias, sendo evidente como as crenças actuais se mostram cada vez mais débeis. "Aqui o limbo além o paraíso além o inferno/ que cheiro a despegado meu general". Tivemos a ambição de sair a investigar o nunca visto, derrotando cada um dos nossos caprichos, até sentirmos de novo algo que se pareça com um ímpeto famélico, fazendo desabrochar em nós um vício urgente, que nos sustente para o resto dos dias, confiando-nos à desgraça mais certa. Mas nisto tudo, de tanto nos tirarmos o pulso, levarmos em conta os indicadores deste evidente desgaste, que diagnóstico se pode fazer? Alguém ali levantou a mão... Talvez uma pergunta nos pudesse transportar noutra direcção. Mas esse é um dos dramas do nosso tempo. Quem é que ainda formula perguntas com real empenho em que lhe respondam? Descontando as crianças, quase ninguém. De tanto nos cuspirem em cima essa música que faz as vezes da consciência, já não sabemos exactamente onde começa ou acaba a nossa própria cabeça. Desfizeram o nosso juízo de tanto o mexerem com a colher de pau do senso comum. Seria terrível se falhasse a luz, mas talvez, passados uns meses, os pensamentos autónomos ressuscitassem. Estou outra vez a tremer, e sinto a falta de um braço que possa apertar. Deixa-me ler-te uma coisa do avô Teodoro: “Num dos seus ensaios, Aldous Huxley levantou a questão de quem, num lugar de diversão, estará realmente a divertir-se. Com a mesma justiça, pode perguntar-se quem é que a música para entretenimento ainda entretém. Na verdade, parece complementar a redução das pessoas ao silêncio, o desaparecimento da fala como expressão, a incapacidade de se comunicar de todo. Habita as bolsas de silêncio que se desenvolvem entre pessoas moldadas pela ansiedade, pelo trabalho e por uma docilidade pouco exigente. Por todo o lado, assume, sem dar nas vistas, o papel mortalmente triste que lhe coube no tempo e na situação específica dos filmes mudos. É apercebida apenas como música de fundo. Se já ninguém consegue falar, certamente já ninguém consegue ouvir." Já era muito tarde, desta vez. Esta tendência de formarmos bandas de três, andando à chuva, cobrindo distâncias com o vento a soprar e encher as velas do improviso é o que ainda assegura esta noivadiagem. Desta feita, foi o Bruno Peixe Dias quem exumou a estrela sextavada que há no corpo do rio, e trouxe o seu embalo profano habituado a carregar aos ombros filósofos completamente derramados e a soluçar dos prostíbulos até às moradas familiares, inventando pelo caminho as aventuras mais cativantes, de tal modo que as mulheres os acolhem como heróis épicos nesta Ulisseia à deriva. Hoje, não houve festa. Estivemos ali debaixo do telheiro a ouvir o piano ronceiro da chuva, e lá fomos do gargarejo para aclarar a garganta até à serenata que, se não serve para pagar as contas, pelo menos acalora.
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    3:19:11
  • Heroísmos não, por favor. Uma conversa com Vítor Belanciano
    É preciso passarmos bem longe do heroísmo para irmos um pouco além das noções de superfície, desde logo a essas zonas turvas onde o nome sem glória aguarda a sua ocasião, mas para isso, para mergulharmos naquela experiência dos homens infames, não tanto por infamados, mas antes por não gozarem o prestígio e a fama que, aparentemente, todos não conseguem, hoje, deixar de ambicionar, para isso, como dizia o outro (mas qual deles?), para isso o indivíduo com um nome glorioso, o autor como proprietário da "sua" escrita, em suma o sujeito como o mais próprio da experiência, têm de ser abalados. Já seria alguma coisa se pudéssemos libertar-nos dos nomes. Todos temos um, e desfiamos de tanto andar à sua roda, a fazer esse esforço absurdo por nos mostrarmos coerentes com nós próprios. A identidade é esse prego, a mais desoladora e incapacitante das ficções. "Havia, haverá talvez que redescobrir o rasto instantâneo e fulgurante que nos deixam esses que se precipitaram para uma obscuridade, nessas zonas onde todo o 'renome' se perde"... Mas quem foi que disse isto? E se o não tiver dito exactamente assim, como fazemos? E se houver um desvio, uma deriva substancial, como se divide a coisa? Em Nietzsche já é mais difícil alterar uma vírgula que seja, e em Ecce Homo fez notar que "a minha sabedoria consiste em ter sido muitas coisas e ter estado em muitos lugares, para poder chegar a ser um, para poder tornar-me um". Mas Foucault adianta que este Um é radicalizado. Segundo Erígenes, segundo Borges, Deus não sabe quem é nem o que é porque não é um nem um quem. Isto faz dele o oposto preciso de uma imagem de marca. Mas nós colocámo-nos uns aos outros de castigo. Menos que homens, somos marcas, e devemos encontrar o nosso fundamento, hoje, nas mais fundas raízes do negotius, da privação e do desejo, aspirar a essa imanência das grandes pioneiras da indústria. Se é certo que o gosto de não citar pode conduzir-nos a insuspeitados pântanos, e que há formas de apropriação sacana, formas de trespasse, que sinalizam uma tremenda descortesia, é preciso também ter em conta o que disse Goethe numa das suas conversas com Eckerman: "Há na história de toda a arte uma filiação. Quando nos apercebemos de um grande mestre, verificamos sempre que se aproveitou do que os seus antecessores tinham de bom e que é isso precisamente que o torna grande. Homens como Rafael não nascem do solo espontaneamente. Têm as suas raízes na antiguidade, no melhor do que foi feito antes deles. Se não se tivessem aproveitado de todas as vantagens da sua época, não haveria muita coisa a dizer deles." Neste episódio, iremos fazer referência a outros casos, outros exemplos e autores que nos fazem relativizar a ideia de que o plágio é uma ofensa capital entre criadores, sendo que mesmo os grandes, aqueles que realmente admiramos, quase todos praticaram esses raptos ou roubos. Já temos tocado algumas vezes este tema, mas o horror persiste. Quase ninguém reconhece esse pudor maior daquele que preenche uns linguados de prosa, de forma ocasional e sem margem nem para grandes lucros nem grandes transtornos, e que mais do que recear ser acusado de rapinar os ovos de outras aves, receia sobretudo ser vulgar, vir por aí montado no rumor dessas banalidades de base que ninguém verifica se já outro antes disse, porque a todo o momento todos as repetem. A verdadeira sensibilidade muitas vezes está disposta a esse efeito de abertura em que uma outra escrita consegue escrever fragmentos da nossa própria quotidianidade, quando um dito transmigra para a nossa vida. Estou a copiar por cima do ombro de Barthes e ao mesmo tempo a adulterar certas frases de modo a fazer valer aqui um argumento que bem pode perder-se nos arquivos. Não seria de preferir essa selvajaria inspirada, divina, a de receber do texto, qualquer que ele seja, uma espécie de ordem fantasmática, e saborear essa distância, essa suspensão do seu ponto de vista, ou de qualquer outro, antes procurando tecer um tempo interior que represente não um indíviduo mas uma forma de co-existência? "O autor que sai do seu texto e entra na nossa vida não tem unidade", garante Barthes. E acrescenta: "é um simples plural de 'encantos'". Mas, hoje, nem mesmo na literatura se tem direito de passagem, tudo deve ser publicitado por lotes, obras enfileiradas nas estantes, ou jazigos num cemitério. Esta gente não vê a vantagem na dispersão, num canto descontínuo, de amabilidades, acenos, numa incessante troca de correspondências. Não os anima a proposta de um texto que seja destrutor de qualquer sujeito, um frémito que nos dispa dessas miseráveis fantasias neste baile cada vez mais inóspito. Seria melhor que ardesse de vez esta impostura, que o sujeito se dispersasse, que pudéssemos deambular fora de qualquer destino, um pouco como as cinzas que se lançam ao vento depois da morte, mas fazê-lo antes de morrermos, de modo a que se pudesse renascer tantas vezes quantas se desejasse, e contagiar o ambiente, "como átomos voluptuosos, contagiar algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão". Mas preferem os títulos, reconduzir a porcaria da escrita a mais um regime de negociantes. Para confrontarmos este quadro de pressão limitadora, de vigilância e de denúncia, essa chibaria que é um dos traços que reforça o nosso irremediável provincianismo, para falarmos de plágio, mas também das tantas formas de iliteracia que, hoje, pretendem ditar como devem ser saboreadas e traficadas as ideias e o saber, contámos desta vez com Vítor Belanciano, um jornalista e escritor cheio de vícios, desde logo esse de alimentar quem o lia com a sua curiosidade excitada por uma rede de autores, projectos, vivências, num tu-cá-tu-lá, sem receio de violar as fronteiras disciplinares, saboreando música e leituras, esforçando-se por ajudar a instaurar essa ordem fantasmática, e que pagou caro quando supôs que podia escolher não integrar os elencos dos heróis. Acabou atirado para o molhe dos vilões. Assim, cá o recebemos.
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    3:14:01
  • Em breve toda a literatura vai saber a frango. Uma conversa com Guilherme Pires
    O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhes é própria, até ser possível utilizá-los para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercício de ir para as praias homéricas à cata da conquilha, o escritor Christian Salmon mostra-nos como, tantas dessas frases, desgarradas do seu contexto histórico e da obra de que foram extraídas, escapam inteiramente à intenção do autor, tornando-se signos permutáveis, máximas e até chavões, que engrossam o grande caudal de clichés em que se banha a nossa época. Publicado no mais recente número da revista Electra, Salmon recupera a célebre frase de Charles Péguy onde este nos fez notar que "Homero é novo esta manhã e talvez nada seja tão velho como o jornal de hoje". Para Salmon este regresso dos Antigos indicia uma tentativa de recuperar um quadro de referências num mundo onde esses pontos se estão a perder, e no qual todas as autoridades se acham desacreditadas, convocando-se Homero num esforço de satisfazer a nossa busca por um narrador fiável e incontestado. Nos nossos dias, e depois de Kasparov ter sido batido pelo Deep Blue, poderia recriar-se esse enfrentamento num território muito mais poroso e complexo, onde os padrões maquínicos até aqui estavam claramente em desvantagem. Mas, se fosse hoje encenada uma batalha opondo Homero ao Google, o problema não seria saber se o primeiro esmagaria o motor de pesquisa, mas antes, e não havendo métodos analíticos que pudessem decidir de forma objectiva quem ganhou ou perdeu, se não seria o público, ignorando as epopeias, a preferir a mistela que a Google confeccionasse seguindo ponto por ponto as suas preferências, e devolvendo-lhe assim uma espécie de auto-retrato adequadamente filtrado. A questão dos nossos dias não é saber se os clássicos mantêm o seu vigor face aos enredos costumizados para cada um de nós com base nas nossas preferências, mas simplesmente se nós não degradámos o nosso aparelho cognitivo ao ponto de os clássicos estarem a tornar-se demasiado incivilizados e desordeiros ou exigentes para o nosso gosto. O consumidor segue os seus caprichos até à alienação, e aquilo a que confere o valor "humano" assemelha-se cada vez mais a um reflexo distorcido pela máquina. As provas estão aí, e numa notícia que por estes dias circula nos nossos órgãos de informação, ficámos a saber que já foi realizado um estudo de uma universidade norte-americana que concluiu que os leitores estão convencidos de que, se lhes for dado a escolher, preferem a poesia escrita por humanos, mas que, se esta lhes for servida a par daquela gerada por Inteligência Artificial, a partir do momento em que a sua origem lhes seja ocultada, preferem o produto sintético, considerando-o “mais fácil de compreender”, e sendo levados a acreditar que isso significará que foi escrito por um humano e não por uma máquina. A inteligência que nasce do confronto com as dificuldades está a levar uma abada face a todos esses produtos que se reproduzem de acordo com padrões de consumo, e a deixar claro que a cultura de massas foi uma forma de nos deixar tenrinhos para o desbaste maquínico. Se nos esforçássemos por abandonar a perspectiva da eficácia, as projecções trimestrais, as expectativas de lucro e o regime utilitarista que guia as nossas escolhas, se seguíssemos uma matriz de análise histórica, como sugere Fredric Jameson, talvez nos déssemos conta de que a História que ainda somos capazes de imaginar a partir destas métricas é uma forma de agonia, e só conhece um movimento terminal. Se o futuro hoje é tão mais pobre do que foi no passado, é porque não o conseguimos representar de outra forma senão como uma repetição monótona do passado. A ideia consoladora de nos transferirmos para uma realidade onde sejamos imunes face aos perigos, transfere-nos depressa para quadros virtuais. Como assinalou António Guerreiro recentemente, essa tentação de estarmos ao abrigo das catástrofes responde a uma tendência paranóica e está constantemente a atravessar fronteiras que deviam ser intransponíveis. "É habitada pelo fantasma da protecção absoluta e da prevenção, tornando-se assim um obstáculo à liberdade, inclusivamente à liberdade de correr riscos." A humanidade poderia ser definida precisamente como essa espécie que corre riscos desnecessários, pois vive enfebrecida pela possibilidade de superar aquilo que já antes foi alcançado. Steiner aponta o milagre que se dá pelo simples facto das nossas gramáticas engendrarem continuamente proposições contrafactuais, 'e se...', e sobretudo tempos futuros, sendo isso o que deu à nossa espécie os seus meios de esperar e de ir muito para além da extinção da espécie. "Duramos, duramos criadoramente devido à nossa capacidade imperativa de dizer 'não' à realidade, de construir ficções de alteridade, de um 'outra coisa' sonhado, querido ou esperado que a nossa consciência possa habitar." Hoje, esta dimensão humana está em clara perda, e Baudrillard fala de um “hedonismo ligado”, em que o corpo não passa de um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros ginásios e os consultórios de cirurgia plástica e que descrevem uma obsessão colectiva assexuada. Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… “Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.” Ele adianta como ali tudo merece protecção, embalsamamento, restauração. “Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro." O problema é então como localizar a diferença radical, essa que faz renascer o espírito insubmisso e que, diante das dificuldades o torna cada vez mais engenhoso, mais hábil e desafiador... "Como ligar de novo a ignição ao sentido da História para que ela comece uma vez mais a transmitir sinais, por mais débeis que sejam, do tempo, esse que segue adiante, essa margem de alteridade, de mudança, de Utopia", questiona Jameson. É uma questão de privação, de divórcio das máquinas, reconhecendo que aquilo que estas nos oferecem como futuro vai no sentido da nossa substituição. O passo seguinte no quadro evolutivo em que estamos presentemente lançados, passa por fazer do humano apenas o elemento de ligação para esse "sucedâneo maquinal". Neste episódio, e para discutir as implicações e as ameaças que hoje se colocam ao sector editorial, esse que nos últimos séculos tem estado no eixo dos esforços de transmissão de um legado cultural de séculos, contámos com a experiência desse subtil operador que tem sido Guilherme Pires, nas suas funções enquanto organizador de jogo, editor e conselheiro, tradutor, revisor, e tapa-buracos em toda a linha, alguém que conhece de cor a planta do edifício, e trabalhou em todos os pisos, desde aqueles submersos e que estão escondidos dos leitores e do público em geral, até aos andares modelo e às operações de charme e todos os esquemas que tanto embevecem os patêgos.
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    3:21:16

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Sobre Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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