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Enterrados no Jardim

Podcast Enterrados no Jardim
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim qu...
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Episódios Disponíveis

5 de 75
  • Em breve toda a literatura vai saber a frango. Uma conversa com Guilherme Pires
    O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhes é própria, até ser possível utilizá-los para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercício de ir para as praias homéricas à cata da conquilha, o escritor Christian Salmon mostra-nos como, tantas dessas frases, desgarradas do seu contexto histórico e da obra de que foram extraídas, escapam inteiramente à intenção do autor, tornando-se signos permutáveis, máximas e até chavões, que engrossam o grande caudal de clichés em que se banha a nossa época. Publicado no mais recente número da revista Electra, Salmon recupera a célebre frase de Charles Péguy onde este nos fez notar que "Homero é novo esta manhã e talvez nada seja tão velho como o jornal de hoje". Para Salmon este regresso dos Antigos indicia uma tentativa de recuperar um quadro de referências num mundo onde esses pontos se estão a perder, e no qual todas as autoridades se acham desacreditadas, convocando-se Homero num esforço de satisfazer a nossa busca por um narrador fiável e incontestado. Nos nossos dias, e depois de Kasparov ter sido batido pelo Deep Blue, poderia recriar-se esse enfrentamento num território muito mais poroso e complexo, onde os padrões maquínicos até aqui estavam claramente em desvantagem. Mas, se fosse hoje encenada uma batalha opondo Homero ao Google, o problema não seria saber se o primeiro esmagaria o motor de pesquisa, mas antes, e não havendo métodos analíticos que pudessem decidir de forma objectiva quem ganhou ou perdeu, se não seria o público, ignorando as epopeias, a preferir a mistela que a Google confeccionasse seguindo ponto por ponto as suas preferências, e devolvendo-lhe assim uma espécie de auto-retrato adequadamente filtrado. A questão dos nossos dias não é saber se os clássicos mantêm o seu vigor face aos enredos costumizados para cada um de nós com base nas nossas preferências, mas simplesmente se nós não degradámos o nosso aparelho cognitivo ao ponto de os clássicos estarem a tornar-se demasiado incivilizados e desordeiros ou exigentes para o nosso gosto. O consumidor segue os seus caprichos até à alienação, e aquilo a que confere o valor "humano" assemelha-se cada vez mais a um reflexo distorcido pela máquina. As provas estão aí, e numa notícia que por estes dias circula nos nossos órgãos de informação, ficámos a saber que já foi realizado um estudo de uma universidade norte-americana que concluiu que os leitores estão convencidos de que, se lhes for dado a escolher, preferem a poesia escrita por humanos, mas que, se esta lhes for servida a par daquela gerada por Inteligência Artificial, a partir do momento em que a sua origem lhes seja ocultada, preferem o produto sintético, considerando-o “mais fácil de compreender”, e sendo levados a acreditar que isso significará que foi escrito por um humano e não por uma máquina. A inteligência que nasce do confronto com as dificuldades está a levar uma abada face a todos esses produtos que se reproduzem de acordo com padrões de consumo, e a deixar claro que a cultura de massas foi uma forma de nos deixar tenrinhos para o desbaste maquínico. Se nos esforçássemos por abandonar a perspectiva da eficácia, as projecções trimestrais, as expectativas de lucro e o regime utilitarista que guia as nossas escolhas, se seguíssemos uma matriz de análise histórica, como sugere Fredric Jameson, talvez nos déssemos conta de que a História que ainda somos capazes de imaginar a partir destas métricas é uma forma de agonia, e só conhece um movimento terminal. Se o futuro hoje é tão mais pobre do que foi no passado, é porque não o conseguimos representar de outra forma senão como uma repetição monótona do passado. A ideia consoladora de nos transferirmos para uma realidade onde sejamos imunes face aos perigos, transfere-nos depressa para quadros virtuais. Como assinalou António Guerreiro recentemente, essa tentação de estarmos ao abrigo das catástrofes responde a uma tendência paranóica e está constantemente a atravessar fronteiras que deviam ser intransponíveis. "É habitada pelo fantasma da protecção absoluta e da prevenção, tornando-se assim um obstáculo à liberdade, inclusivamente à liberdade de correr riscos." A humanidade poderia ser definida precisamente como essa espécie que corre riscos desnecessários, pois vive enfebrecida pela possibilidade de superar aquilo que já antes foi alcançado. Steiner aponta o milagre que se dá pelo simples facto das nossas gramáticas engendrarem continuamente proposições contrafactuais, 'e se...', e sobretudo tempos futuros, sendo isso o que deu à nossa espécie os seus meios de esperar e de ir muito para além da extinção da espécie. "Duramos, duramos criadoramente devido à nossa capacidade imperativa de dizer 'não' à realidade, de construir ficções de alteridade, de um 'outra coisa' sonhado, querido ou esperado que a nossa consciência possa habitar." Hoje, esta dimensão humana está em clara perda, e Baudrillard fala de um “hedonismo ligado”, em que o corpo não passa de um roteiro cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inúmeros ginásios e os consultórios de cirurgia plástica e que descrevem uma obsessão colectiva assexuada. Assim, vai caracterizando uma sociedade fóbica, que responde a esse imperativo de tudo proteger, tudo captar, tudo circunscrever… “Tudo recensear, tudo armazenar, tudo memorizar.” Ele adianta como ali tudo merece protecção, embalsamamento, restauração. “Tudo é objecto de um segundo nascimento, o eterno do simulacro." O problema é então como localizar a diferença radical, essa que faz renascer o espírito insubmisso e que, diante das dificuldades o torna cada vez mais engenhoso, mais hábil e desafiador... "Como ligar de novo a ignição ao sentido da História para que ela comece uma vez mais a transmitir sinais, por mais débeis que sejam, do tempo, esse que segue adiante, essa margem de alteridade, de mudança, de Utopia", questiona Jameson. É uma questão de privação, de divórcio das máquinas, reconhecendo que aquilo que estas nos oferecem como futuro vai no sentido da nossa substituição. O passo seguinte no quadro evolutivo em que estamos presentemente lançados, passa por fazer do humano apenas o elemento de ligação para esse "sucedâneo maquinal". Neste episódio, e para discutir as implicações e as ameaças que hoje se colocam ao sector editorial, esse que nos últimos séculos tem estado no eixo dos esforços de transmissão de um legado cultural de séculos, contámos com a experiência desse subtil operador que tem sido Guilherme Pires, nas suas funções enquanto organizador de jogo, editor e conselheiro, tradutor, revisor, e tapa-buracos em toda a linha, alguém que conhece de cor a planta do edifício, e trabalhou em todos os pisos, desde aqueles submersos e que estão escondidos dos leitores e do público em geral, até aos andares modelo e às operações de charme e todos os esquemas que tanto embevecem os patêgos.
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    3:21:16
  • Enclave, de Maria Lis, na Pó de Vir a Ser, em Évora
    Registo do lançamento de "Enclave", de Maria Lis, no dia 9 de novembro, em Évora, com apresentação de António Guerreiro   Maria Lis foi à procura de objectos sem uso, remetidos aos dias passados, uma peneira, uma caixa de comprimidos, uma balança para cartas, um limpador de espingardas, algumas pedras, uma goteira e outras miudezas e entregou-os a várias crianças para lhes perguntar: e com estas coisas que já temos, também podemos fazer outro mundo? Uma geografia de entrelinhas, de silêncios e de mãos-na-massa, as imagens de Ana Filipa Correia, os objectos à espera de ânimo e o texto escrito no contexto da residência artística da poeta Maria Lis, ENCLAVE, editado agora pela Língua Morta, poderão ser vistos, ouvidos e mexidos na Pó de Vir a Ser, como promessas de outro modo, no dia 9 de novembro, pelas 15h00. Será também ocasião para lançamento em Évora da edição de ENCLAVE. Fotografias: Ana Filipa Correia A residência artística da poeta Maria Lis integrou as actividades do programa bienal da Pó de Vir a Ser, “A Condição do Campo”. A Pó de Vir a Ser é uma estrutura financiada pelo Ministério da Cultura / Direcção Geral das Artes e tem o apoio do Município de Évora, Município de Montemor-o-Novo, Assimagra, Formas de Pedra. Integra a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea.
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    1:17:17
  • O Apocalipse Alegre (Remix). Uma conversa com Ana Maria Pereirinha
    A morte não é mistério nenhum, já o facto de os vivos hoje terem tornado a vida tão insípida que os espíritos do passado se recusam a renascer, isso sim deve angustiar-nos. Perdemos o direito às repetições capazes de produzir alguma harmonia a partir da textura do quotidiano. O próprio tempo parece ter visto a sua natureza mudar, e a duração deixou de ser sentida como no estado normal das coisas. Hoje somos existências em suspenso, e mesmo os eventos mais drásticos não chegam para nos transtornar verdadeiramente. Diante da catástrofe, empanturramo-nos. Paul Valéry, no breve ensaio publicado entre nós com o título "O Governo da Máquina", fala numa crise da Inteligência, uma crise de todas as faculdades do espírito mediano, e instiga-nos a investigarmos em que sentido a vida moderna, os maquinismos obrigatórios desta vida e os hábitos que nos impõe podem modificar, por um lado, a fisiologia do nosso espírito, todas as nossas percepções e, sobretudo, o que fazemos com as nossas percepções ou no que estas se tornam em nós. Ainda pior que o desespero, é o apagamento desses sinais de vida, dessas inversões súbitas, dos gestos que reviram o sentido da história em que vínhamos embalados e produzem o inesperado. Estamos gastos por usos e para fins em relação aos quais nem demos o nosso acordo nem fomos consultados. Limitámo-nos a permitir que o estado de coisas se nos impusesse. Valéry entende que, se o lazer aparente ainda existe, perdemos o lazer interior… “Perdemos esta paz essencial das profundezas do ser, esta ausência inestimável durante a qual os elementos mais delicados da vida se refrescam e se revigoram. Somos banhados pelo esquecimento total; lavamo-nos do passado, do futuro, da consciência clara e premente, da presença implícita e confusa das obrigações suspensas e das expectativas que espreitam.” Um dia destes deixaremos sequer de perguntar quanto ao que podemos fazer para mudar o rumo das coisas. O carácter de um homem diluir-se-á juntamente com o seu destino à medida que deixa de poder afectá-lo. Mas durante muito tempo houve um bom número de canalhas que não se eximiam, ao abandonarem qualquer esperança de transformar o mundo, de pelo menos deixarem um rastro de devastação nesses actos desesperados. “Fugir, sim, mas no momento da fuga empunhar uma arma” (Deleuze). Mas hoje a máquina começa a ser o verdadeiro actor do nosso tempo. Ela mergulhou os seus circuitos em nós e empurrou-nos para uma frequência em que qualquer dos nossos impulsos se vê seduzido e dominado, absorvido por ela. Continuamos a usar termos como resistência ou revolução, mas a iniciativa foi perdida para a máquina. É esta quem programa todos os aspectos das nossas vidas, estende o seu horizonte e articula todos os domínios através da sua eficácia esmagadora. A alma começa a parecer-se cada vez mais com um algoritmo. Perante o efeito de intoxicação pela pressa que Valéry diagnosticou nas nossas sociedades há um século, este poeta-filósofo notou como “das inteligências vivas, umas gastam-se a servir a máquina, outras a construí-la, outras ainda a planear ou a preparar uma mais potente; uma última categoria de espíritos gasta-se a tentar escapar ao domínio da máquina”. E acrescenta que “estas inteligência rebeldes sentem, com horror, que o todo completo e autónomo que era o espírito dos antigos é substituído por um qualquer daimon inferior que só pode colaborar, aglomerar-se, encontrar o seu sossego na dependência, a sua felicidade num sistema fechado que se fechará tanto mais sobre si mesmo quanto mais exactamente criado por nós e para nós”. Mas e podemos lutar ainda por alguma coisa? Para Valéry é preferível recuar e voltar a pensar. Ele entendia que não se trata de resolver estes problemas, porque talvez o grande vício tenha nascido desse abandono, desse pacto estabelecido com as máquinas e que não é substancialmente diferente dos terríveis compromissos que o sistema nervoso faz com os demónios subtis da classe das drogas. “Quanto mais a máquina nos parece útil, mas útil se torna; quanto mais útil se torna, mais nos tornamos incompletos, incapazes de nos privarmos dela.” Não estamos apenas a transformar-nos noutra coisa. Estamos a deixar de ser o que quer que tenhamos sido até aqui, ao ponto desses espectros já nem saberem como exercer alguma pressão sobre nós. O passado está a sentir o sinal perder-se, a tradução a tornar-se cada vez mais débil, como um morse que persistisse já sem ouvidos que o soubessem interpretar. Para falarmos sobre os limites e as dificuldades que a tarefa do tradutor comporta, sobre erosão desta e doutras profissões liberais, sobre a tão ameaçada classe ligada às actividades da inteligência ou do espírito, sobre as ocupações desses indivíduos indefinidos, e cuja acção tem muitas vezes um alcance incomensurável, pedimos a Ana Maria Pereirinha para partilhar connosco as anotações que foi fazendo no seu dossier de pautas, isto ao fim de décadas em que tem estado ligada aos vários momentos e dimensões da vida editorial, estando hoje dedicada à tradução de textos e obras literárias. Colhendo cacos e escolhos, comparando fragmentos, tentando alcançar uns palmos sobre aquilo que se adivinha, começou a ficar claro que tudo aquilo que ainda somos capazes de recordar nos dá uma medida do que já perdemos ou estamos prestes a perder.
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    3:18:34
  • O país em lágrimas no funeral de um autocarro. Outra conversa com o Changuito
    Quando é que um político ou algum dos nossos banqueiros se indispõe de vez com a mentecapta ironia disto tudo e nos vem ler alguns dos poucos versos realmente espinhosos que Fernando Pessoa nos dirigiu? Quando é que um deles passa realmente ao ataque, e lança em tom ríspido aquele: "Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,/ Sem coragem para ser gente com violência e audácia,/ Com a alma como uma galinha presa por uma perna!" Mas quando é que, em vez desse ar compungido de quem vive os seus dias num perpétuo luto, e agora ergue a voz para fazer a evocação incandescente e delirada de um pobre autocarro, quando é que abandonamos esse "Portugal-centavos, resto de Monarquia a apodrecer República extrema-unção-enxovalho da Desgraça..."? E quando é que se tem direito a uma exaltante "Cena do Ódio" e que não seja apenas um esbaforido desabafo, mas uma incitação contra essa caricatura a todos os títulos porca que pretendem fazer passar de todos nós, falando-se na passividade lusa, no gosto malsão da ordem? Quando é que alguém relembra que a haver uma réstia de patriotismo todo ele residirá no combate a essa ordem panúrgica, para que não sejamos continuamente destinados à impotência e às representações falsas que circulam em nosso nome? Talvez, como aventou Eduardo Lourenço, a nossa crise provenha de uma má leitura de nós mesmos e acaso de um excesso de complacência para com tudo quanto é dos outros. Mas pode bem servir-nos de disfarce essa brandura toda enquanto se engatilha algum tipo de metamorfose diabólica. Pois a alternativa tem sido esta coisa que temos vivido, e então mais vale que cada um tenha numa cábula aqueles versos do Almada: "Futrica-te espantalho engalanado,/ apeia-te das patas de barro,/ larga a espada de matar/ e põe o penacho no rabo!/ Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!/ Espuma-te no chumbo da tua Valentia!/ Agoniza-te Rilhafoles armado!/ Desuniversidatiza-te da doutourança chacina,/ da ciência da matança! (...) Despe-te da farda,/ desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu/ que ficas desempregado!/ Acouraça-te de senso,/ vomita de vez o morticínio,/ enche o pote de raciocínio,/ aprende a ler corações,/ que há muito mais que fazer/ do que fazer revoluções! (...) Põe de parte a guilhotina,/ dá férias ao garrote!/ Não dês língua aos teus canhões,/ nem ecos às pistolas,/ nem vozes às espingardas!/ – São coisas fora de moda!/ Põe-te a fazer uma bomba/ que seja uma bomba tamanha/ que tenha dez raios de Terra./ Põe-lhe dentro a Europa inteira,/ os dois pólos e as Américas,/ a Palestina, a Grécia, o mapa/ e, por favor, Portugal!/ Acaba de vez com este planeta,/ faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!/ (Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!/ e esta gente distraída em guerras!)" Estamos todos gastos pelo uso que nos damos, e, ainda pior, imensamente desmoralizados pelas coisas que nos saem da boca, pelos lugares onde damos por nós, pela companhia, desde logo a desses a quem, na falta de outra gente, chamamos convivas, parceiros, amigos, toda a espécie de canalhas cuja obra são as suas infindáveis justificações. Doentes daquilo que somos, vivemos com o pavor de qualquer outra coisa. Por estes dias, como sempre que ocorre algum acidente que sobressalta as nossas consciências imersas em fantasias cada vez mais vulgares, cada um mente a si mesmo sobre a sua estranheza em relação àquilo de que agora se indigna, procurando desde logo esquivar qualquer responsabilidade quanto ao desenrolar das coisas, que apenas se resolve quando tudo se esquece e se passa à coisa seguinte. "Se já vimos multidões coléricas fazer revoluções, nunca vimos massas indignadas fazer outra coisa que não protestar de forma impotente", como nota o Comité Invisível. E ainda que o reconheçamos, é esta a prescrição que circula e que é acatada quase sem excepções. E depois?... (Mas antes ainda é preciso olhar em volta e confirmar se há ainda alguém que faça essa pergunta.) Bem, depois a burguesia vinga-se ao passo que a pequena-burguesia, já enfadada com a sua indignação, retoma a sua farsa, dormindo para o mesmo lado que até ali. Tudo isto ainda é uma forma de consumo, de segurarmos o único horizonte que acicata e satisfaz os nossos apetites, mesmo que em troca de nos tornar prescindíveis, descartáveis, imemoráveis. Neste episódio, reunimo-nos uma vez mais nessa cripta escavada à unha pelo mais graduado dos nossos almirantes que vivem numa bulha constante com as tempestades em mar alto. Regressámos à Poesia Incompleta pedindo o balanço e os enjoos das sucessivas tripulações que se revezam entre turnos a horas absurdas e que caberiam bem entre estes versos de José Emilio Pacheco, que servem ao mesmo tempo para ilustrar a natureza deste navio que atraca na Lapa como a rir-se da envolvência: "O nosso barco encalhou tantas vezes/ que já não tememos ir ao fundo./ É-nos indiferente a palavra catástrofe./ Rimos de quem pressagia males maiores./ Navegantes fantasmas, prosseguimos/ rumo ao porto espectral que retrocede./ O ponto de partida já se esfumou./ Sabemos há muito que não há regresso.// E se ancorarmos no meio do nada/ seremos devorados pelo sargaço. / O único destino é continuarmos a navegar/ em paz e em calma rumo ao próximo naufrágio."
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    4:16:46
  • Música electrónica, recreios agrícolas e lições de magia. Uma conversa com Mariana Pinho
    Por uma vez, e contrariando o Bowie, podíamos deixar de ser heróis, ou, pelo menos, de representar a realidade de forma anã para nos fazer sobressair. Contudo, às vezes parece ser esta que se encolhe ou retira, que se esquiva das nossas representações. Neste consumo constante de lendas pessoais, de fanfarronadas e galhardias histriónicas, estamos a perder todo o tesão por esse ideal de vivermos embrulhados uns com outros. "O coração é uma arte difícil", assinalava algures José Amaro Dionísio, adiantando que, tirando essa proximidade conquistada a palmo, "tudo o resto é a crédito". Em tempos, no alfabeto que compôs para a nossa dor comum, ele vincava como "solidão é uma palavra obscena"... "É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo." Este medo vive por estes dias embriagado, numa exuberância ridícula, fazendo um espectáculo de si mesmo. É uma forma de disenteria, e se antes as pessoas estavam sempre a morrer disso, hoje cagam-se até morrer exibindo-o como podem, alguns maçando meio mundo, outros em publicações nas redes sociais. Mirando à volta, qualquer uma dessas manifestações exprimem um estado de dependência, e seria realmente muito extraordinário se dos milhares de emissões que concorrem entre si na esfera virtual resultasse uma harmonia perfeita. Seria espantoso se de tudo isso resultasse uma satisfação qualquer, em vez de ser um modo de cada um se individuar enquanto protagonista de uma telenovela pindérica, quando não se preparou para mais do que fazer trabalhos ocasionais como figurante. Mas continuamos nisto, e com todos estes heroísmos patéticos estamos a dar cabo numa só época do prestígio que a raça foi constituindo para si no cultivo dessas fabulosas injúrias contra nós mesmos. Valeria Luiselli, numa das páginas do seu "Deserto Sonoro", confessa que não tem um diário, que os seus diários são as coisas que sublinha nos livros de outros. "Jamais emprestaria um livro a quem quer que fosse depois de o ler. Sublinho demasiado, às vezes páginas inteiras, às vezes duplamente." Estamos necessitados de gente que viva as suas vidas como um imenso plágio, lendo em voz alta, até ganhar uma tal naturalidade que quem quer que viesse para um debate sem um bom argumento ensaiado ao espelho ou em frente ao gato, aos catos, horrizando a vizinhança, fosse apupado até desaparecer de cena. Por uma vez que deixássemos de ter de aturar esses improvisos tacanhos e simplórios, toda essa gaguez e pigarreio, todo esse visco dos lugares-comuns que andam por aí sempre requentados. Este ajustamento permanente a modas passageiras e aos significantes das redes sociais lembra o aviso de Hannah Arendt: "Os clichés, as frases feitas, a adesão a códigos estereotipados e convencionais de expressão e comportamento têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção que todos os acontecimentos e factos, pela simples razão de existirem, apresentam ao nosso pensamento." Estamos a apagar o mundo com esses solilóquios desgraçados, com essa exibição constante nesta feira de aberrações fastidiantes. Melhor seria dar expressão ao assombro expansivo de um leitor, montando um guião a partir dos materiais mais diversos, tudo mastigado, esse resplendor efémero das coisas que provocaram em nós uma rara emoção, cada frase revista mil vezes, boa parte delas memorizadas, transcritas para todo o lado. Num tempo em que o decoro deu lugar aos derrames e eflúvios mais desgastantes, a espontaneidade deve despontar de um trabalho minucioso, colossal. O elemento essencial que eleva um palco é a exigência de quem quer que esteja a assistir. Não existe teatro sem esse elemento cruel, essa possibilidade de se ser arrasado ao representar uma cena. Devíamos realmente fazer do mundo um palco, em vez desta odiosa sala de espera, este pardieiro onde permanecemos sentados enquanto o nosso rabo incha a caminho da meia-idade, e depois dessa outra onde já nem falamos de outra coisa. E todas estas zonas e regimes da cultura assentam no princípio da inércia. Luiselli diz-nos que também frequentou a universidade, ainda que por pouco tempo. Perdeu a paciência para os professores com a sua "linguagem alimentada a anfetaminas, críptica, rizomática e absolutamente cheia de si". Vivemos enredados entre a selvajaria e estas zonas onde a sofisticação intelectual significa sempre alguma forma de compromisso com vista a neutralizar toda a acção transformadora. Talvez se soubéssemos de cor as palavras que realmente gostaríamos de dizer, e a vida mais não fosse do que buscar a ocasião propícia a cada cena, talvez então não fosse tudo tão inócuo. Neste episódio, Mariana Pinho, entre as aulas de História numa escola no Monte da Caparica, as raves de música electrónica no meio de bosques com bruxaria de ordem química à mistura, e teses sobre a vida das plantas, as florestas e o diabo a sete, veio falar connosco sobre este tempo congelado em que vivemos, e os laços que ainda são possíveis em termos afectivos e solidários, modos de organização colectiva experimental que possam permitir-nos emergir dos destroços em que vivemos imersos.
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    3:23:30

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